Quando decidi participar das 24 horas de quadrinhos de Wannsee tinha em mente que era um esforço hercúleo com uma única e importante recompensa. Um quadrinho completo produzido em um único dia!
Fazer quadrinhos tem sido uma importante parte da minha vida, porém sua feitura fica espremida entre as horas que o capitalismo me permite fazer o que gosto. Ter 24h consecutivas dedicado a criação de uma história me pareceu uma oportunidade rara.
O que é 24h de Quadrinhos.
Talvez você não saiba todas as regras das 24h de quadrinhos então vou te dar um breve resumo. Às 10h00 de um sábado é sorteado um tema e a partir daí temos 24 horas para escrever o roteiro, fazer o rascunho, inserir os textos e finalizar a HQ.
Me preparei da melhor forma possível. Deixei as páginas configuradas no Ipad e escolhi alguns personagens antigos que poderiam participar da minha história. Assim independente do tema eu poderia selecionar um personagem que combinasse e ganhar tempo.
Ter feito digitalmente tem também muitas razões. Eu me considero muito mais um roteirista que desenha do que um desenhista que escreve. Tenho muito mais dificuldade em desenhar do que em escrever, por isso o Ipad me permite ganhar tempo (crtl+c & crtl+v) e qualidade (que eu tanto necessito).
Roteiro
Às 10h00 da manhã estava tudo pronto. Meu microfone estava mudo, minha câmera aberta transmitindo a tela do Ipad e eu assistia meus companheiros de desafio através do Zoom. Esperávamos o tema ansiosos. Eu tinha muitas ideias e estava confiante, mas quando anunciaram que o tema era “Rosto no Espelho” eu fiquei um pouco desconcertado.
Não parece um tema difícil, mas um tema muito fácil de cair em um clichê. Alguém que não é você, mas que tem o seu rosto, um duplo, uma farsa… No primeiro momento achei que todo mundo ia para esse caminho e tentei fugir do dele. Posteriormente percebi que não. Eu estava errado e quase ninguém seguiu esse caminho. Mas naquele momento eu tentei fugir daquilo que considerei óbvio.
Passei a escrever tópicos de tudo aquilo que considerei se relacionar ao tema. Tudo que vinha à cabeça, por mais óbvio ou por mais absurdo eu ia colocando em uma folha sulfite. Buscando concatenar os pontos atrás de uma plot interessante.
Neste momento eu estava ansioso, mas seguindo as dicas que o Rapha Pinheiro (organizador) tinha nos passado. Em especial a de usar as primeiras horas para o roteiro com cuidado. Não se render ao desejo de começar logo o desenho e negligenciar a história.
Continuei ainda por bastante tempo escrevendo tópicos e breves relatos.
A verdade é que eu não consegui me desviar totalmente do meu clichê inicial, mas uma ideia me deixou animado. Fazer do quadrinho uma sessão de terapia.
O personagem principal diria sempre as mentiras que dizemos para nós mesmos quando não queremos enfrentar a realidade. O espelho diria o que pensamos e sentimos de verdade, sem o filtro do julgamento.
Ótimo! Era um ponto de partida interessante. Mas uma sessão de terapia? Apenas pessoas sentadas conversando em uma sala com espelhos? Ótima ideia para um conto, mas um quadrinho… 24 páginas de cabeças falantes? Não parece bom.
E em que ambiente eu poderia colocar personagens e que houvesse espelhos o suficiente para que a consciência emergisse com alguma frequência?
Não consegui pensar em nenhum lugar específico, mas tive uma ideia para solucionar esse problema e um outro. Decidi que a sessão de terapia aconteceria de forma fantasiosa. O personagem idealizaria que as sessões não eram sessões, mas encontros românticos. Assim eu poderia levar as personagens para diversos ambientes diferentes e não apenas ao consultório.
E minha desculpa é (pra mim) relativamente boa. Existe um tabu com psicólogos e psiquiatras. Muita gente entende que são lugares para “doidos”. Ao fantasiar que a sessão de terapia é apenas um encontro, ele poderia tentar tirar esse peso.
Para desempenhar esse papel escolhi Nina, uma personagem antiga que fala com ela mesma. Perfeito! Agora ela falaria com o espelho. Só pra chegar até aqui gastei mais de uma hora e meia.
Pensei que futuramente eu postaria no meu instagram em quatro posts. Cada parte um date. Assim mentalmente dividi a história em quatro capítulos de seis páginas cada.
Date 1 - Nina diz que seu espelho está com defeito (não quebrado). Ele mostra algo diferente do que o celular mostra (que é o que Nina quer ver).
Neste momento decidi que o celular seria a representação das desculpas que damos para não encarar a realidade. São os “filtros”.
Date 2 - O espelho fala cada vez mais verdades e de forma cada vez mais alta até que Nina não consegue ignorar e explode, demonstrando toda sua tristeza e raiva.
Date 3 - Nina está trancada no banheiro. A Crush/Psicóloga já não a alcança mais. Nina passa a ter ideações suicidas. Nina coloca podcasts para abafar sua mente, mas a dor grita mais alto. Cada vidro é um reflexo da sua ideação.
Date 4 - Resolvi dividir essa parte em duas. Date 4 e Date 5. A ideia era deixar as páginas do Date 4 em branco. Para dar a sensação que não tem mais Nina. Ela não está mais entre nós. Mas duas páginas em branco? Achei que eu estava roubando no desafio. Resolvi desenhar duas páginas inteiras. Na primeira a Crush esperando em um bar com as sombras para a esquerda. Na segunda página, a mesma mesa de bar vazia com as sombras para a direita. Dando a mensagem que um tempão passou e nada de Nina.
Sessão 5 - Esse capítulo se passa todo no consultório. Mas fiquei com medo das pessoas não entenderam porque a crush agora era agora a psicóloga. Por isso mudei o nome do capítulo para Sessão 5.
Tive esperança de que como era a primeira vez que o título seria uma “Sessão” ao contrário dos habituais “Dates”, ao começar por “Sessão 5”, os leitores compreendessem que os Dates também eram sessões de terapia. Só que maquiados pela fantasia. Aqui o espelho não diria nada, justamente porque Nina finalmente teria a coragem de dizer a verdade.
Acredito que gastei 2h30 no roteiro. Devia ter marcado. Fica de lição.
Rascunho
Até esse momento deixei o Zoom no mudo pra me concentrar na história. A partir daqui eu ligo o zoom e começo a ouvir o pessoal conversando. Eu rascunho ouvindo podcast, então pensei em ficar ouvindo a galera.
Lembrem, eu não sou um bom desenhista. E ainda por cima desenho devagar. Mas a pressão das horas passadas me fez focar em riscar simples e rápido. No Zoom as pessoas debatiam sobre os processos e alguns contavam que ainda estavam no roteiro e outros falavam que iam começar a desenhar pra ver onde as histórias iam sozinhas.
Eu consegui entrar em um raro momento de imensa concentração. Fui riscando, riscando, riscando. Muda de página. Risca, risca, risca, apaga, copia, cola, muda de lugar, risca, muda de página, muda de página, risca.
Duas horas depois, terminei seis páginas. Parei pra olhar ao redor e eu estava exausto. Essa foi a segunda maior dificuldade: O cansaço físico. Mas a primeira também se apresentou nesse momento. A ansiedade.
Dividi mentalmente o trabalho em quatro (como no roteiro original). A cada seis páginas eu me permitiria respirar. O problema é que eu percebia a quantidade imensa de energia e tempo gasto para completar apenas 25% do rascunho.
Isso me deixou bastante ansioso.
Pelos meus cálculos daria tempo de completar a missão, mas eu precisaria manter aquele ritmo e isso era mentalmente estafante. Pensar que eu teria que seguir com tanto empenho por tanto tempo já me consumia.
Parei para almoçar.
Voltei a desenhar, rabiscar, mudar de página, rabiscar. Pouco apaguei, mais rabisquei por cima. Percebi que a quantidade de quadros por páginas começou a cair. Nas primeiras seis páginas havia até uma página com nove quadros (que se repetiam quase 100%, é verdade), mas agora até os quadros iam rareando.
Terminei a segunda parte. 12 páginas e minha mão começava a dar sinais de falência. No Zoom o Raphael nos atualizava da briga que o Denis Mello (quadrinista e professor) travava com sua impressora revoltada. O Denis faria seu quadrinho todo de forma analógica.
Eu não lembro que horas eram, mas lembro de pensar que se eu terminasse meus rascunhos até as 20h eu teria tempo de finalizar tudo. Parei de novo pra comer e descansar por meia hora.
De volta a labuta, mais riscos, mais desenhos, mais páginas. As pessoas conversavam no Zoom, mostravam seus desenhos, papear bastante e eu estava gostando muito de os ouvir. De vez em quando o Rapha me perguntava alguma coisa, eu respondia mas… eu sou uma pessoa muito ruim de papo. É uma soma de timidez e introspecção, mas eu me senti bem quisto e a camaradagem entre os participantes me dava aquilo que eu precisava na minha maratona de ansiedade. Paz.
Terminei a terceira parte. Olhei para o relógio e recalculei. Ok! Se eu terminar meia noite os rascunhos e começar a desenhar a meia noite e um, acho que dá tempo. Voltei a rabiscar com o objetivo de terminar meus rascunhos a meia noite. Aquelas duas páginas que eram pra ficar em branco e viraram grandes desenhos de mesas e cadeiras de um barzinho agilizam a última parte.
E acabei me rendendo a algumas cabeças falantes.
Terminei meu rascunho às 23h00 (mais ou menos). Uhuu! Uma hora antes da última previsão e uma hora depois da primeira previsão. Animei. Acho que vai dar.
Desenho Final.
Antes de falar do meu processo de desenho, preciso falar das pessoas e do cansaço. Aqui entra com mais força o impacto do cansaço e sua antítese. O Zoom dos quadrinistas. A mão já doía, as costas doíam, a vontade de dormir já se agarrava em mim e nos outros. A partir daqui alguns tiraram um tempo pra dormir um pouco, outros comentavam o quanto estavam cansados.
Se eu estivesse sozinho em casa, seria esse o momento de desistir. Mas eu só estava só fisicamente, através da rede mundial de computadores (dizem que veio pra ficar) eu estava interligado com outros quadrinistas.
O Denis Mello passou a contar algumas coisas sobre o universo de Teocrasília e muitos dos quadrinistas iam conectando o que ouviam com suas histórias, uma parte de nós pedia sugestões e davam atualizações de seus projetos. Mas pra mim uma das coisas mais legais foi ouvir o Rubens Menezes.
Ele estava fazendo uma adaptação de Machado de Assis e pra cada história contada ele tinha um punhado de comentários engraçados que me faziam rir aqui sozinho enquanto desenhava loucamente. Na hora eu não percebi, mas ele tirou uma enorme pressão dessa minha ansiedade.
Mas de todas as coisas que o Rubens falou, a que mais me impactou foi sobre o prazer de estar ali desenhando. Ele já parecia em paz de não terminar, se não fosse possível, mas ainda dedicado a continuar com empenho. Ele pareceu curtir o processo, curtir a criação, curtir as conversação. Enquanto eu estive bitolado em terminar, o Rubens me fez me sentir feliz de participar. Se você ler isso aqui Rubens, muito obrigado.
Quanto aos desenhos foi um exercício de fé e foco. Eu desenhava o mais rápido possível. Uma das coisas que me surpreendeu foi que achei o desenho bem honesto. O bom de não ser um desenhista incrível é que eu facilmente atinjo meu máximo. Sinceramente, se eu tivesse bastante tempo não sei se eu seria capaz de fazer muito melhor.
Dividi minha mente em quatro, peguei fôlego e fui até acabar a primeira parte (página 6) sem parar. Terminei-as por volta das 2h00. Sai, comi alguma coisa e voltei as 2h30. 5 minutos depois voltei e minha bateria da caneta acabou.
Tive vontade de cortar minha cabeça fora. Eu poderia ter deixado carregando enquanto comia. Perdi 30 minutos. A caneta não carregou toda, mas voltei à labuta.
Mais seis páginas. 3 da manhã. Minha mão doía, mas não dava tempo de parar. Continuei até umas 4h30 quando a caneta parou de novo. Começou a amanhecer. Até aí eu tinha feito por volta de 14 páginas. Faltavam 10.
Quando retornei consegui embalar bem e por volta das 06h00 eu tinha 18 páginas completas. Faltavam 4 horas para fazer as últimas seis páginas que eram as páginas com menos desenhos.
Aqui foi o começo do fim pra mim. Minha mente relaxou porque eu finalmente tinha certeza que eu conseguiria finalizar. Por outro lado essa certeza diminuiu o nível de adrenalina abrindo as portas para o cansaço e o sono me bateram com mais força.
Eu passei a desenhar de forma modorrenta. A cada página terminada eu levantava pra beber água e vagabundear pela casa. Segui assim, querendo parar, mas continuando. Meus quadros mais simples são dessa parte.
Por volta das 08h30 eu terminei.
Terminei
Finalmente! Terminei! Em 22h mais ou menos eu concluí uma história completa. Roteiro, rascunho, letras e arte final. O alívio foi tão pululante que sublimou o sono. Em vez de ir dormir, fiquei no Zoom vendo meus companheiros terminarem. Joguei um xadrez. Eu tinha tudo. Paz e um quadrinhos de 24 páginas.
Por um segundo pensei em revisar meus quadrinhos. Mas só de pensar em voltar para aquela maratona, mesmo que sem obrigações, fez eu voltar a sentir o cansaço. Me despedi dos meus companheiros e finalmente me rendi ao sono.
O dia seguinte não acaba jamais.
O dia seguinte foi de grande felicidade e ao contrário do que pensei no início, o quadrinho finalizado foi o que menos me impactou. Não me entenda mal. To muito feliz e muito orgulhoso dele, mas calcule o tanto que as outras coisas me deixaram mais feliz.
Que coisas? Ter conhecido o amor que meus companheiros têm por quadrinhos. Um amor que muitas e muitas vezes me faltou, mas que agora eu o tomo inspirado e emprestado. Ter conhecido minha capacidade de me adaptar às necessidades. Ter feito um traço bem mais livre de retas e de ter gostado disso. Sem dúvida meu jeito de desenhar jamais será o mesmo.
Ter conhecido as coisas que outros quadrinistas gostam de ler. Enfim… são muitas as coisas. Por agora ainda consigo sentir a dor nas costas que essas 24 h me trouxeram, espero que o ano passe devagar para chegar a próxima maratona, mas quando ela vier, com certeza vai me encontrar aqui, preparado para mais 24 páginas de suor, tinta, lágrimas e amor.
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